A edição deste domingo, 21 de novembro, do jornal O Estado de São Paulo, publicou no Caderno 2 um artigo assinado pelo curador do ciclo de debates Como Nasce uma Obra-Prima, Claudio Nigro. Nele, Nigro analisa a função da arte, a essência da obra-prima, assuntos que estão sendo expostos e debatidos no Centro Cultural Banco do Brasil todas as terças e quartas-feiras, às 19hs, até o dia 8 de dezembro. Clique aqui para ler o artigo na íntegra no site do Estadão ou leia abaixo a reprodução na íntegra.
UM SALTO MORTAL À ALMA DO ESPECTADOR
Toda obra traz um mistério e deixa um símbolo: esta é a sua missão
A história da arte é a história da compreensão. Uma obra de arte é como um
"olhar solidificado". Enxergar a Mona Lisa é perceber a maneira como
nós nos relacionamos a um quadro mil vezes cultuado, descrito e reproduzido.
Atravessar o seu mistério é um trabalho de subtração, que enfrenta o vidro
espesso da banalidade. De tanto vê-lo, achamos o quadro banal...
Qualquer obra-prima nos faz um convite: vestirmos os olhos da história ou da
compreensão, ou mesmo voltarmos a estar nus diante de um objeto que aciona a
central fisiológica do encanto.A obra-prima muda o olhar do homem, muda a maneira com que sentimos.
Transforma o sabor do tempo. O que é a Mona Lisa senão outra esfinge?
Toda obra-prima expõe um mistério e deixa um símbolo. O Davi do Michelangelo
propõe um xeque-mate. Quem é o homem renascentista? Contra qual Golias vai
lutar?A caveira de brilhantes de Hirst é uma crítica à sociedade consumista,
cravejada até o osso de luxo e ostentação? Ou o emblema de um tempo? Morte
transfigurada de beleza?
Para uma obra-prima não há resposta. Ela é a matéria, manipulada ao ponto de
nos fazer perder dentro dela a rota da própria linguagem. Toda obra de arte
utiliza uma linguagem. Cinema, poesia, pintura, todas possuem uma sintaxe.
Naquilo que os alemães chamam de meisterwerk (trabalho do mestre), essa sintaxe
desaparece.
Transcendência. Economia e política são baseadas na nossa relação com a matéria.
Podemos dizer que o homem é o animal que modifica a matéria, da indústria ao
corpo. Na arte essa relação é tão direta que desaparece. Todos temos a
impressão que uma obra de arte é transcendente. Mas ela é sempre objeto
material: um disco, uma partitura, uma onda sonora.
Essa ideia de arte como canto místico de sereias advém do fato de que na
língua poética, no mármore da escultura, no concreto arquitetônico de uma
obra-prima, desaparece o rastro da sua construção. Toda linguagem é defeituosa,
a palavra nunca toca no que representa. Um texto é uma projeção de conceitos
que viaja de uma mente para outra.
Palavras em si são coisas gráficas. Esse é o limite da comunicação que a
arte supera, chegando à emoção de quem sabe se expor à sua radiação estética.
Ela emociona atravessando a si mesma e chegando num salto mortal à alma do
espectador.
A Mona Lisa, emblema de obra-prima, parece respirar. Dizem que Leonardo
"inventou" a respiração num quadro, eu diria mais: a Gioconda está
expirando. Há movimento e alma dentro de tinta e tela, pano. No século 20 sintetizamos uma ideia de artista boêmio e marginal, nociva ao
bom funcionamento da sociedade, além de conceito velho. O artista tem um lugar
específico na engrenagem social: o poeta era condecorado em praça pública na
Roma dos Césares.
Imortalidade. Além de contribuir para o equilíbrio emocional da sociedade (a
novela das 8 nada mais é de que uma catarse da desigualdade social, por isso
tão necessária), quando capaz de obras-primas, o artista pode propor ao mercado
um produto raro: a imortalidade. Pois uma obra-prima contém presente, passado e
futuro.
Artista é aquele que sabe que a linguagem o impede de dizer o
impronunciável. Então, ele trai a si mesmo, trai a matéria, trai a linguagem e
deixa um símbolo: a cruz, a pirâmide, uma escultura, uma frase. O poeta é um
fingidor, e nessa mentira desesperada, crava na matéria a sua ideia de forma.
Esta fala conosco quando lemos, assistimos, ou ouvimos a sua sinfonia. A música
é o som organizado, proposto como uma lição de beleza.
Picasso é a natureza destruída enquanto contemplada. Duchamp propõe o
livre-arbítrio na ideia de cultura: se uma roda de bicicleta é arte, arte é o
que nós decidimos que arte é. O homem se distingue no fato de poder nomear a si
mesmo. Adão dá nome aos animais, o pensador diz quem é e quais os significados
da vida.
Uma obra-prima é um convite a estarmos vivos.
Com ou sem Deus, o homem pode decidir se acredita no simples poder econômico
ou na própria capacidade de inventar. Aonde colocamos nossa ideia de beleza
está o centro da nossa ideia de mundo. Organizar esteticamente vida e morte
posiciona a religião no núcleo da civilização. Mas a arte também participa da
experiência prática do sagrado. Catedrais, templos e mesquitas são a prova.
Beuys se flagelava para trazer de volta ao corpo a experiência mística. Todos
sentimos uma explosão diante de um grande espetáculo. Uma obra que nos tira o
ar é algo extremamente sagrado e ligado ao homem por aquilo que ele tem de mais
profundo, sua relação com o prazer.
Mensagem eterna. Tudo na história segue esse caminho. As pirâmides do Egito
não são monumentos, mas símbolos. Emblemas da relação fundamental: a
manipulação da matéria. Empilhar pedras gigantescas e formar um objeto
ultradimensional (o ponto depois da ponta da pirâmide não é matéria, talvez
seja luz, talvez um conceito... de qualquer forma, a estrutura nos leva a
meditar sobre seu formato) que, como diria Nietzsche, é uma "vontade de
potência", uma mensagem eterna, gritante e indecifrável.
Tudo o que o homem toca tem um significado. A obra-prima tem mil.
Ótimo texto, Nigro! Sintetiza bastante o discurso e a temática apresentados durante o ciclo de debates no CCBB SP, que está maravilhosamente enriquecedor, construtivo e reflexivo!
ResponderExcluirParabéns pelo trabalho, e fica a dica: transforme o material em livro, será muito bom!
Abraços